sábado, 13 de maio de 2017

O Espírito das Ruas

"Se tivesse um conto de réis por cada vez que falei revoltado com a mania de mudarem os nomes às ruas, estava rico. Tenho para mim que trocar topónimos bonitos, sensíveis e significantes por referências políticas de gosto duvidoso (e, quando não, usando sintaxe canhestra) ou por nomes de correlegionários, amigos, conhecidos, apanigados ou familiares, é desdém e desamor à cidade. 

O despautério ganhou forma com o advento do liberalismo, desenvolveu-se com as políticas oitocentistas, enraizou na 1a República e assumiu contornos antológicos durante o salazarismo. Para não ficarem atrás, com a 2a República, cuidaram de mudar, remudar, trimudar umas tantas designações. (Esqueceram-se, no afã, de restituir à cidade um do seus mais belos topónimos: Praça das Flores, pervertida com nome de político a quem o Porto nada deve.) Tem sido um vêr-se-te-avias no ataque à personalidade produnda do burgo, já que chamar a sítios cujos nomes têm centenas de anos coisa totalmente desadaptada do espírito do lugar é maneira insidiosa de descaracterização. (Convenhamos que quando se batiza o Jardim do Carregal por Carrilho Videira, ou se chama João Chagas à Cordoaria não há memória urbana que resista). 


João de Araújo Correia, que não tinha papas na língua para apontar os dislates contra a santa terrinha (e talvez por isso seja ignorado por modernos e pós-modernos), escreveu num dos seus textos belos e penetrantes: "Os nomes das ruas, antigamente, eram simples, eufóricos e de saber popular. Casavam-se, entre nós, com a índole da nossa língua e o modo de ser da nossa gente. Não feriam o bom gosto nem o bom senso de quem os lesse. Eram admiráveis na sua profunda singeleza, como linhas de autor clássico". O número de vandalismos toponímicos antiportuenses é um rosário. Infelizmente os responsáveis passam, mas o atentado fica. E como a escola, os costumes e a tradição desaprenderam a leitura da cidade, os descalabros ganham raízes, e em tempo de memória construída ao ritmo dos anúncios televisivos, as pessoas deixaram de saber os nomes verdadeiros. 

Porto, memória e esquecimento / Hélder Pacheco / 1994

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