domingo, 30 de junho de 2024

As Salamandras no Solstício de Fogo

Fiquei fascinado com este texto de Jacinto Antón, publicando ontem no El País e, assim sendo, não resisti a partilhá-lo também aqui. O artigo fala sobre as larvas de salamandra que o autor apanhou e decidiu libertar, já depois da metamorfose, por alturas do São João, ou melhor, do Solstício de Verão. 

Pelo meio menciona o livro "O ramo de ouro" ("The golden bough" no original) que leu na adolescência e que é livro de cabeceira, e que eu fiquei extremamente curioso para ler! O PDF encontra-se facilmente e de forma gratuita na net mas eu quererei certamente encontrar o livro, e narra depois, no fim do texto, a viagem novamente ao mesmo lago onde tinha recolhido as larvas, para agora as libertar... 


"Como tinha que libertar as salamandras, pensei que não haveria melhor ocasião do que pelo São João, no solstício de verão, dada a lendária relação desses anfíbios com o fogo. Plínio afirmava que a salamandra é tão intensamente fria que apaga as chamas como o gelo, pelo que é provável que o sábio nunca tenha tocado numa salamandra em toda a sua vida romana. Enfim, dizia que tinha que libertar as minhas salamandras, o que merece uma explicação. Eu tinha-as recolhido numa lagoa em Viladrau no seu estado larvar, que é aquático, e ficaram em casa até fazerem a metamorfose e se transformarem em réplicas em miniatura da salamandra adulta que todos conhecem, preta e amarela. O pacto — comigo mesmo — é que as retiro da lagoa, que costuma secar, o que condena as larvas, e as devolvo ao mesmo local após lhes proporcionar um lar temporário de acolhimento.

Tenho uma taxa de sobrevivência altíssima que, neste último episódio de criação, chegou aos 100%. De facto, as sete larvas que extraí da lagoa, com meios tão rústicos como uma lata de bolachas Krit de Cuétara e um coador, sobreviveram todas para a sua reintrodução. O seu cuidado exigiu praticamente inutilizar um dos lavatórios de casa, convertido em berçário de salamandras.

As minhas salamandras pertencem à subespécie franco-catalã Salamandra salamandra terrestris, que é a que existe no Montseny, embora a designação que adoro seja a que recebe a genérica salamandra comum em inglês: fire salamander, salamandra de fogo, que parece da antiga salamandrologia e até da alquimia. O que nos remete para o São João.

A festa do solstício de verão sempre foi a minha favorita desde adolescente
, pelo romantismo das verbenas, e estimulou-me a ler precocemente "O Ramo Dourada", de James George Frazer, um dos meus livros de cabeceira. No São João, 24 de junho e na véspera, celebra-se oficialmente o nascimento de São João Baptista, mas na realidade, conta Frazer, a festividade superpôs um verniz cristão a toda uma série de celebrações solsticiais pagãs na Europa, que se celebravam com fogueiras. A ideia do fogo e dos festivais ígneos, claro, é devolver a força ao sol nesse momento crítico. Algumas fogueiras acendiam-se para afugentar dragões, criaturas relacionadas com o fogo como as salamandras, e que se acreditava que por São João estavam mais ativos.

Assim, no passado São João, saímos para uma excursão à tarde, eu, a minha filha Rita, o seu companheiro Ramón o bebé de ambos, Mateo, de um mês, as salamandras e eu rumo à lagoa de Can Batllic, onde a Rita, então grávida, e eu as tínhamos recolhido a 30 de março. O Mateo, numa mochila, parecia não se aperceber de muito, mas seguramente mais do que na sua visita anterior à lagoa. Gostava da ideia de que viesse porque era como fechar o círculo: as larvas tinham-se metamorfoseado e ele tinha nascido. Chegados à lagoa, tirei as pequenas salamandras do seu mini-terrário de viagem, procedendo a deixá-las entre a vegetação ao redor da água. Não poderia dizer se reconheceram o seu local de nascimento, mas desapareceram rapidamente no terreno, dissolvendo o seu pequeno esplendor na erva.

Fiquei profundamente triste, afinal tínhamos convivido durante três meses, alguns amores de verbena duraram menos. O que seria delas? Das salamandras, digo. Além dessa melancolia, o ato não tinha nenhum componente dramático, por muito Frazer que lhe acrescentasse. Então vi que a minha filha tinha reservado a última salamandra para a soltar ela própria e colocava-a na palma da mão diante dos olhos escuros e muito abertos do seu filho. Anfíbio e bebé pareceram olhar-se como se partilhassem algo que a nós outros escapava. O sol, já muito baixo, saiu então de entre as nuvens e um brilho avermelhado pareceu incendiar as duas criaturas. Foi um momento mágico. Não sei o que isso vai significar na vida do Mateo, mas não são todas as crianças que têm uma salamandra como madrinha, nem o destino lhes oferece pelo São João um batismo de fogo.

 As salamandras no solstício de fogo | Jacinto Antón | El País, 29 de junho de 2024 

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