Artigo sobre a morte de Jane Goodall publicado hoje no jornal britânico The Guardian:
O Instituto Jane Goodall anunciou que faleceu de causas naturais enquanto se encontrava na Califórnia, no âmbito de uma digressão de palestras nos EUA.
“As descobertas da Dra. Goodall como etóloga revolucionaram a ciência”, lê-se no comunicado. “Foi uma incansável defensora da proteção e restauração do nosso mundo natural.”
Goodall foi considerada a maior especialista mundial em chimpanzés, tendo a sua carreira durado mais de 60 anos. A sua investigação foi fundamental para provar as semelhanças entre o comportamento dos primatas e dos seres humanos.
Na semana passada esteve em palco em Nova Iorque, antes de participar num podcast do Wall Street Journal dois dias depois. Amanhã deveria estar presente num evento em Los Angeles dedicado à sua vida e carreira, e na próxima semana tinha outra participação agendada em Washington DC.
Homenagens de todo o mundo chegaram de organizações de conservação e defesa dos direitos dos animais. As Nações Unidas elogiaram a forma como “trabalhou incansavelmente pelo nosso planeta e por todos os seus habitantes, deixando um legado extraordinário para a humanidade e para a natureza”.
Nascida em Londres em 1934, Goodall disse que a sua paixão pelos animais começou com a oferta, pelo pai, de um brinquedo em forma de chimpanzé de peluche. O interesse cresceu à medida que se mergulhava em livros sobre Tarzan e o Dr. Dolittle.
Após terminar a escola, deixou os seus sonhos de lado por não ter meios para frequentar a universidade. Trabalhou como secretária e numa produtora de cinema até que um convite de uma amiga para visitar o Quénia lhe pôs a selva – e os seus habitantes – ao alcance.
Durante a sua visita ao Quénia, no final da década de 1950, começou a trabalhar com um arqueólogo, que a enviou para Londres a fim de estudar comportamento de primatas.
Em 1960, ainda na casa dos 20 anos, iniciou a investigação de chimpanzés em liberdade no Parque Nacional de Gombe Stream, na Tanzânia. As suas observações desafiaram a ideia de que apenas os humanos sabiam utilizar ferramentas e de que os chimpanzés eram vegetarianos. Em 2002 afirmou:
“Descobrimos que, afinal, não existe uma linha nítida que separe os humanos do resto do reino animal.”
Em 1977 fundou o Instituto Jane Goodall, que trabalha na proteção de primatas com o apoio das comunidades locais e promove projetos juvenis em benefício dos animais e do ambiente. Atualmente, conta com delegações em mais de 25 países.
Goodall, distinguida pela ONU como Mensageira da Paz em 2002, foi uma voz ativa em questões ambientais e uma crítica da utilização de animais na investigação médica e em jardins zoológicos.
Em 1991, o instituto lançou o projeto Roots & Shoots, para envolver jovens na conservação. O programa começou com um grupo de estudantes que trabalhava com Goodall e expandiu-se para quase 100 países.
Este ano, o projeto Hope Through Action do instituto sofreu cortes no financiamento por parte do governo dos EUA, durante a administração Trump. A USAID tinha prometido 29,5 milhões de dólares para cinco anos. A iniciativa visava proteger chimpanzés em perigo e os seus habitats na Tanzânia ocidental, através da reflorestação e de uma “metodologia liderada pelas comunidades” para conservar a biodiversidade e melhorar a subsistência local.
Mesmo já nos seus 80 anos, Goodall mostrava poucos sinais de abrandar, continuando a escrever e a falar sobre o seu trabalho. Durante a pandemia, lançou o podcast Hopecast, no qual entrevistava ambientalistas e ativistas.
Foi distinguida como Dame em 2004 e, este ano, recebeu a Medalha da Liberdade das mãos de Joe Biden. Em 2022, o seu legado foi celebrado de forma inusitada, com uma boneca Barbie Jane Goodall, criada no âmbito da série da marca dedicada a mulheres inspiradoras.
Em 2023, numa entrevista ao Guardian, sublinhou a importância de fazer a diferença, mesmo em pequena escala, em vez de tentar resolver todos os problemas do mundo:
“Temos uma janela de tempo para mudar o rumo deste planeta, mas está a fechar-se rapidamente. Se os governos cumprirem o que prometem, ainda temos uma hipótese.”
Recordando a infância, mencionou o seu espírito curioso, como o dia em que passou horas escondida num galinheiro para descobrir de onde vinham os ovos. “Quando finalmente voltei, a mãe já tinha chamado a polícia”, contou. “Estive desaparecida durante horas. Em vez de me castigar, ela ouviu atentamente as minhas descobertas.”
A mãe foi crucial para que perseguisse os seus sonhos, chegando a voluntariar-se para acompanhar a filha na primeira expedição, já que as mulheres não podiam viajar sozinhas.
Em 2021, Goodall publicou O Livro da Esperança: Um Guia de Sobrevivência para um Planeta em Perigo, no qual admitia que, por vezes, sentia estar a travar uma batalha perdida, mas explicava como encontrava forças para continuar:
“Ainda resta muitíssimo que salvar, e é por isso que temos de lutar. Isso dá-nos energia extra. Tenho dias em que não me apetece continuar, mas não dura muito. Acho que porque sou teimosa.
Não vou desistir. Morrerei a lutar, disso tenho a certeza.”